
Gabriel Perissé
O abuso espiritual é um fenômeno invisível, mas devastador, que se espalha silenciosamente em alguns espaços religiosos. Segundo Gabriel Perissé, especialista no tema, muitas vítimas enfrentam uma luta silenciosa, muitas vezes sem saber que estão sendo manipuladas ou abusadas em suas mais profundas crenças. Em uma série de revelações, o entrevistado compartilha sua experiência de observar, pesquisar e refletir sobre um problema que está enraizado nas relações assimétricas de poder e fé.
"A confiança de fé é a raiz de todos os abusos espirituais", afirma. O abuso pode começar de forma sutil, com o abusador se apresentando como uma figura benevolente, alguém que representa Deus para as vítimas. Essa dinâmica se transforma em um processo psicológico insidioso, onde as vítimas muitas vezes se sentem impotentes e confusas, incapazes de identificar o que está acontecendo até que o dano se torne quase irreversível.
Com um olhar crítico e empático, o entrevistado discute a importância de ouvir as vítimas e o papel vital da Igreja e das instituições religiosas na restauração da autonomia espiritual dos indivíduos.
Abuso espiritual: a manipulação invisível. O que motivou o senhor a escrever um livro sobre abuso espiritual e como a sua trajetória pessoal influenciou essa obra?
Com o tempo, frequentando os espaços da Igreja e conversando com diversas pessoas, a gente começa a compreender o que acontece—tanto as experiências maravilhosas quanto os aspectos mais difíceis e problemáticos. Ao longo da minha trajetória, fui percebendo e, de certa forma, também vivenciando situações de abuso espiritual. Infelizmente, esse tipo de abuso está presente dentro da cultura de certos grupos e paróquias. De alguma maneira, todos acabam sendo impactados por isso. Alguns relatos me tocaram profundamente, o que me levou a aprofundar essa questão em uma pesquisa acadêmica. Nessa investigação, percebi que essa preocupação já existia há bastante tempo. Fora do Brasil, há estudos sobre o tema em italiano, francês e inglês, e, nas igrejas protestantes de língua inglesa, esse debate já ocorria desde os anos 1980. Os católicos entraram nessa discussão um pouco mais tarde, mas o problema sempre esteve presente em diferentes contextos, muito antes de se tornar um tema de pesquisa.
Como o senhor definiria especificamente o abuso espiritual e quais são os sinais mais sutis que passam despercebidos nas comunidades?
O abuso espiritual é o crime perfeito, pois o espírito é invisível. Não há como fazer um exame de corpo de delito ou uma acareação, já que tudo acontece dentro da pessoa e nas relações assimétricas entre abusadores e vítimas. Mas, de certa forma, todas as relações humanas são assimétricas. Então, o que exatamente caracteriza o abuso espiritual? Ele é algo que apenas as vítimas sentem, muitas vezes sem sequer saber que estão sendo abusadas. Por isso, é tão difícil identificá-lo, o que contribui para sua subnotificação e para que permaneça oculto, misturando sentimentos de vergonha, culpa e medo. Trata-se de um fenômeno real, ainda que invisível.
Reconhecer os sinais do abuso espiritual exige uma nova perspectiva pastoral, teológica e psicológica. É preciso desenvolver a capacidade de perceber como esse "invisível" se manifesta de maneira concreta. A sociologia, a psicologia e a filosofia, entre outras ciências, podem contribuir para a compreensão da dinâmica abusiva. Muitas seitas, comunidades e grupos, inclusive aqueles que frequentamos ou até mesmo fundamos, podem praticar o que se chama de 'bomba de amor'—uma falsa caridade, um falso interesse. Em alguns casos, quem pratica essa manipulação acredita estar acolhendo e promovendo o crescimento do grupo, mas, na verdade, trata-se de um proselitismo disfarçado.
O mais complexo é que, muitas vezes, o próprio abusador não tem plena consciência do que está fazendo. Isso torna o abuso espiritual algo difícil de identificar, pois ele transcende a nossa compreensão imediata. Todos estamos sujeitos a sermos vítimas ou até mesmo agentes de abuso, ainda que de forma não intencional. Não me refiro necessariamente a um grau criminoso de abuso, mas a pequenos gestos e atitudes que perpetuam essa cultura sem que percebamos. Por isso, é essencial um esforço contínuo de autocrítica e conversão, para que não sejamos capturados por essa cultura abusiva, infelizmente presente em diversos espaços religiosos.
O senhor menciona no livro que o abuso espiritual serve como um guarda-chuva para outros tipos de abuso. Como isso funciona?
Essa é uma questão que leva tempo para ser compreendida, pois o mais visível, imediato e escandaloso costuma ser o abuso sexual ou financeiro. Quando o bolso fica vazio ou o corpo sofre agressões, a percepção de que houve um abuso físico é quase automática. No entanto, esses abusos concretos geralmente são precedidos pelo abuso espiritual, que se entrelaça com o abuso de autoridade, de poder, emocional e de consciência.
Na tese apresentada no livro, todos esses abusos são ramificações e desdobramentos de um abuso ainda mais profundo, que serve como matriz e raiz de todos os outros: o uso da confiança de fé. Não se trata de qualquer tipo de confiança, mas de uma confiança absoluta, depositada na fé.
Quando alguém olha para um sacerdote, um líder religioso, o fundador de uma comunidade, um catequista ou até mesmo um missionário digital e enxerga nessa pessoa uma representação de Deus, pode entrar, sem perceber, em uma dinâmica de abuso. Se esses líderes se aproveitam desse poder, que está diretamente ligado à fé e à confiança em Deus, acabam por ocupar um lugar que não lhes pertence, quase assumindo o papel divino.
A vítima, por sua vez, pode acreditar sinceramente que seguir essas pessoas é o mesmo que seguir a Deus, sem perceber que está sendo manipulada e conduzida a uma relação abusiva. Esse é um dos aspectos mais sutis e perigosos do abuso espiritual.
Quais são os mecanismos psicológicos e teológicos mais comuns utilizados aí por líderes religiosos para exercer certo controle abusivo sobre as pessoas?
O abusador age como um predador, e seu comportamento não passa totalmente pelo racional. Sua perversidade é quase espontânea. Ele desenvolve uma habilidade quase intuitiva de identificar quem será sua vítima ideal, observando as fragilidades, as carências e os medos dessa pessoa. Com esse "farol" apurado, ele se aproxima, vai cercando a vítima, aproveitando-se de seu estado vulnerável. O cineasta italiano Pier Paolo Pasolini afirmou que todo torturador reconhece sua vítima, e, de fato, o abusador consegue identificar sua presa, especialmente ao perceber que ela precisa de ajuda ou orientação. Em troca desse auxílio, que pode parecer legítimo – como tirar alguém das drogas ou oferecer uma bolsa de estudos – o abusador começa a envolver a vítima em uma série de abusos, que vão de abusos de consciência e confiança até abusos sexuais e financeiros. A vítima, muitas vezes, só percebe tarde demais que, em sua boa fé, doou um carro, fez testamento em favor de um líder de seita ou entregou parte de sua herança. São situações que podem parecer absurdas, mas justamente por isso o abusador sabe que as pessoas ao redor não acreditarão no que está acontecendo, o que faz com que a vítima se sinta desarmada e isolada. Portanto, é essencial educar e prevenir as pessoas e os ambientes religiosos para esse tipo de comportamento, que, embora aparente ser muito santo e benevolente, esconde manipulação. O predador é um mestre em controlar a situação: ele controla a música, o ambiente, as falas, as imagens – tudo para criar uma atmosfera que favoreça seus próprios interesses.
Como diferenciar a autoridade legítima e a manipulação espiritual?
Esse é, sem dúvida, o ponto mais difícil de compreender, não é? Quem souber a resposta certamente escreverá um livro de sucesso. Mas, na verdade, estamos falando de discernimento, algo que é muito complicado. É fácil falar sobre ter discernimento, mas realizá-lo é um desafio. Por exemplo, um padre que está sendo investigado por supostamente abusar de 40 freiras ainda se encontra em uma situação ambígua. Não se sabe ao certo se ele é culpado, mas há muitos indícios de que ele possa ser realmente um abusador, embora não tenha havido um julgamento. Curiosamente, essa mesma pessoa escreveu um livro chamado Discernimento. Se ele for, de fato, o abusador que se pensa que ele é, ele teria usado o livro sobre discernimento para enganar as pessoas que o leram, fazendo com que elas não pudessem discernir o que estava acontecendo. É tudo tão surreal que às vezes nos perguntamos se estamos nós mesmos enlouquecendo. Um padre que abusava de coroinhas no Rio de Janeiro também escreveu um livro sobre formação de coroinhas.
O abusador é tão ousado que ele consegue se apresentar na televisão, falar com liberdade e manter uma imagem pública como uma pessoa íntegra, inteligente, capacitada. Ele é capaz de enganar até mesmo a Deus, para usar uma expressão mais forte. Sua perversidade é tão grande que é extremamente difícil distinguir quem é quem.
As vítimas fazem denúncias, mas elas não são ouvidas. Muitas vezes, outros afirmam: "Como ele poderia fazer isso? Ele é tão bom, ela é tão santa!" Alguns abusadores até preparam sua própria canonização ao longo da vida, deixando relíquias aqui e ali. Então, um sinal mais claro, talvez, para nos ajudar no discernimento, é quando percebemos um narcisismo de um orientador espiritual. Ele fala excessivamente de si mesmo, se coloca como exemplo, compartilha muitas visões. Mas quem realmente tem muitas visões não se apressa em falar sobre elas. São Tomás Aquino, por exemplo, teve uma visão tão profunda que não conseguiu nem escrever depois disso. Quando alguém afirma ter tantas visões, talvez devêssemos ser mais cautelosos.
Romano Guardini, o grande teólogo, dizia que após a anunciação, Maria entrou em silêncio profundo, porque não teria palavras para expressar sua experiência. Se uma pessoa realmente tem uma visão, ela dificilmente terá tempo ou vontade de falar sobre ela. E quem marca hora para a cura divina, como se fosse um evento programado, será que isso é realmente tão simples assim?
É preciso desenvolver a capacidade de perceber esses sinais. Para isso, é necessário aprender, ouvir, estudar. Devemos criar condições para uma formação preventiva que nos dê mais discernimento e, de certa forma, uma malícia saudável, como disse Jesus: "Sede simples como as pombas e prudentes como as serpentes." Quase poderia se dizer "maliciosos como a serpente". A serpente simboliza o demônio, e essa frase sugere que precisamos ser astutos e prudentes como ele, sem perder a humildade e a simplicidade das pombas. Talvez essa imagem seja a chave para entender o que é o discernimento: não perder a fé nem a inocência, mas também não ser tão ingênuo a ponto de acreditar que tudo está bem, ignorando as maldades que existem por trás de muitos que se dizem "anjos de luz".
O Senhor observa em sua obra que muitas vítimas de abuso espiritual acabam abandonando completamente a sua fé. De que forma as vítimas de abuso espiritual podem iniciar o seu processo de cura e reconstrução da fé sem abandonar completamente a sua espiritualidade?
Esse é um grande problema. O que o Papa Francisco tem salientado é a importância de escutar a vítima, porque muitas vezes elas se manifestaram e foram rechaçadas, revitimizadas ou até punidas. Foram ameaçadas de descomunhão, como se estivessem querendo destruir a Igreja ou a reputação de alguém. É claro que podem existir denúncias falsas, mas, nesse caso, deve-se investigar com respeito ao direito de defesa dos acusados. Agora, no que diz respeito à vítima, independentemente do que aconteça com o abusador, ela precisa recuperar sua autonomia espiritual, porque, na verdade, ela perdeu essa liberdade. Recuperar a liberdade dos filhos de Deus significa proporcionar a ela uma nova experiência espiritual, uma experiência renovada. A Igreja, como instituição, precisa oferecer ajuda incondicional a essas pessoas, incluindo ajuda terapêutica, e ajudá-las a compreender que o que aconteceu foi doloroso, mas que a Igreja não é conivente com o abuso. Esse é um ponto fundamental, pois ao se entender que a Igreja não compactua com isso, a vítima começa a encontrar algum tipo de tranquilidade. A partir daí, ela deve seguir seu próprio caminho, levando em consideração sua história e o processo de recuperação, que pode ser longo e envolver uma desintoxicação emocional. A confiança em Deus precisa ser restaurada, já que, muitas vezes, o abusador se posicionava como alguém que representava Deus, deixando a vítima com dúvidas: "Será que Deus permitiu que isso acontecesse? Como é possível que em nome de Deus eu tenha sofrido tanto? Será que Deus me abandonou?" Uma vítima expressou essa dor ao Papa Francisco dizendo: "Eu me senti como uma criança que estivesse sofrendo e cuja mãe virasse as costas." A vítima, então, sente-se desamparada, sem saber para onde ir. E isso é um processo longo, não é algo que se resolve com um simples clique, como um interruptor que apaga a dor. Cada história é única, e as lembranças de uma missa, uma liturgia, um texto evangélico, um comportamento, ou um símbolo religioso podem trazer à tona um sentimento de desespero, solidão e dor. Por isso, é necessário caminhar ao lado da vítima, como Jesus fez com os discípulos de Emaús, que estavam traumatizados e desanimados. Ele fez um trabalho psicoterapêutico com eles para que se reintegrassem à comunidade. O desejo da vítima muitas vezes é de ir embora ou até mesmo de acabar com a própria vida. Para que isso não aconteça, é preciso caminhar junto, acolher o sofrimento e mostrar que o que aconteceu não é a regra. Esse é o grande desafio da Igreja: não ter medo de enfrentar esse sofrimento também, pois, embora a instituição fique ferida e sua imagem seja prejudicada, é mais importante cuidar da pessoa ferida do que da instituição ferida. Isso, acredito, é a essência do ensinamento do Papa Francisco sobre esse tema.
Na era digital percebemos o surgimento dos influenciadores católicos digitais com grande alcance nas redes sociais. Quais critérios os fiéis podem usar para discernir conteúdos religiosos online que promovem uma espiritualidade saudável daqueles que podem conter elementos abusivos.
Acredito que um dos elementos importantes para avaliar influenciadores digitais católicos é perceber o ódio presente nas suas palavras. O tom de voz, o ataque constante, a fala agressiva sobre uma pessoa ou instituição, mesmo que a pessoa tenha cometido algo errado na opinião do influenciador, nos leva a refletir sobre o porquê dessa campanha de ódio. Por que falar mal da CNBB, da Igreja, de um bispo, de um padre ou até do Papa? É necessário fazer uma pergunta inicial: por que esse ódio? Essa é a primeira questão a ser levantada. Não devemos ouvir de maneira ingênua, mas analisar com atenção, ouvir de novo e perceber se isso condiz com o espírito católico. Quando ouvimos o Papa, por exemplo, ele pode dizer coisas duras, mas sempre o faz por amor. Ele não responde com raiva. Ao contrário, ele é criticado e ainda assim se mantém firme em seu silêncio e humildade. Portanto, um primeiro critério seria observar bem, ouvir atentamente e perceber o tom, a possível presença de ódio. E questionar: por que esse ódio?
Muitos influenciadores digitais seguem a lógica da internet: se fizerem escândalo, se atacarem alguém, se reagirem de forma violenta, terão mais adesão e engajamento. Então a pergunta que surge é: essa pessoa está fazendo isso por amor à Igreja ou por amor ao próprio canal? Essa é uma questão fundamental para refletirmos ao avaliar a atuação desses influenciadores.
E como tem sido o retorno que o senhor tem recebido dos leitores?
Tem sido muito estimulante, porque o livro já teve uma boa venda até agora. Tenho recebido mensagens, e-mails e até recados no Instagram de pessoas que leram e disseram: 'Você está falando coisas que eu vivi, você não descreve exatamente o que vivi, mas suas palavras se relacionam profundamente com o que passei.' Isso me conforta bastante, saber que o livro está realmente ajudando as pessoas a nomear suas experiências. Dar nome àquilo que se vive é algo crucial para as vítimas, pois ao fazer isso, elas se tornam menos prisioneiras da situação. Começam a falar, identificar, discernir, julgar e, gradualmente, recuperar a alegria de viver e a capacidade de conduzir a própria vida. Acho que, nesse sentido, o livro tem trazido boas respostas.

Gabriel Perissé
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