Padre Jaime Crowe: uma vida ao lado dos mais pobres e pelos direitos humanos
Faleceu, em decorrência de um infarto, padre James Crowe, sps, ou como ficou conhecido na Diocese de Campo Limpo, padre Jaime, aos 77 anos. O religioso da Sociedade de São Patrício ficou famoso por suas lutas contra as desigualdades sociais nas periferias do Embu das Artes e Jardim Ângela, extremo sul da capital paulista. Desde 2021 estava morando na Irlanda, quando regressou após viver mais de 50 anos em terras brasileiras.
Jaime nasceu na Irlanda em 7 de março de 1945 e veio para o Brasil no ano de 1969, mesmo ano de sua ordenação sacerdotal. Sua primeira parada foi a cidade de Cotia, onde deu os primeiros passos na língua portuguesa, sem nunca perder o sotaque. Na ocasião tornou-se Capelão do Convento Maria Imaculada das Irmãs Franciscanas de Boulander, no Ressaca.
Seu sorriso largo, voz grave e jeito mandão transpareciam facilmente. Estava sempre disposto a fazer acontecer, nunca se mostrou acomodado. Por vezes polêmico, não recuava quando o assunto era desigualdade social das mais diversas, mas não se impunha quando nos assuntos comunitários era voto vencido. Muito impactado pela pobreza no Brasil, adotou, desde sempre, um discurso mais social.
Embu das Artes
Quando chegou ao Brasil, o território da cidade Embu das Artes pertencia à grande Região Itapecerica da Serra, da Arquidiocese de São Paulo. Foi lá quei assumiu os trabalhos de sua primeira paróquia, a mais antiga da região: em 19 de julho de 1970, Dom Agnelo Rossi, Arcebispo de São Paulo na época, deu posse ao padre irlandês na paróquia Nossa Senhora do Rosário, centro de Embu.
Pouco tempo depois, assumiu o governo da Arquidiocese Dom Paulo Evaristo Arns. Arns levou adiante a opção preferencial pelos pobres, assumida pela Igreja e pelos bispos na América Latina diante das situações sociais desfavoráveis desta porção do continente americano. As prioridades do novo cardeal eram as mesmas do jovem sacerdote Jaime.
Durante os seis anos em Embu das Artes, Jaime lutou ao lado do povo por políticas públicas que atendessem aquela população, que já passava de 20 mil habitantes.
Muitas são as histórias sobre as lutas e conquistas, muitas delas testemunhadas com especial carinho por pessoas que se tornaram não apenas beneficiárias de suas ações, mas amigos de padre Jaime. Por outro lado, houve a inevitável retaliação pelo ‘barulho’ que ele causava quando, para defender a classe operária, desafiava os poderes públicos.
Uma dessas ocasiões aconteceu em Embu: no ano de 1978, ao defender 18 jovens do bairro de Itatuba que foram presos arbitrariamente, o irlandês se indispôs com a governança local e quase foi preso. Padre Jaime nunca escondeu sua militância e atuação em frentes políticas em que acreditava e cobrava com veemência as autoridades públicas.
Preferência pelos pobres
Durante a ditadura militar, padre Jaime travou batalhas pelo fim da violência política praticada pelos militares. Ficou próximo de Dom Paulo Evaristo Arns.
Ele nunca se conformou com a miséria do povo e provocava as autoridades por melhorias, a pessoa mais humana que já conheci.
Sua preferência pelos pobres nunca o afastou do Evangelho, ao contrário, esta era a maneira de seguir o Cristo das narrativas evangélicas. Assim, a evangelização sempre foi sua primeira preocupação. Por muitos anos, contando com poucos recursos, formou ele mesmo catequistas para as comunidades mais distantes do Embu e andou longas distâncias para celebrar a Eucaristia nas comunidades mais afastadas. Tinha o costume de soltar rojões na porta da matriz para avisar a população do horário da missa; mais tarde trocou os rojões por um garoto de bicicleta balançando um sino pelas ruas dos arredores da paróquia.
Todos os Santos
Em 25 de novembro de 1976 a paróquia Todos os Santos, Embu das Artes, foi criada e padre Jaime assumiu a nova paróquia contando com um reforço: a ajuda de outro irlandês da Sociedade São Patrício, o padre Eduardo Joseph Macgettrick.
Nos arredores do Jardim Santa Emília, criou inúmeras CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e chegou a ter mais de 250 grupos de Via Sacra no tempo quaresmal e igual número para as novenas de Natal.
Padre Jaime incomodava. Em 8 de dezembro de 1981, o jornal Folha de São Paulo e a Rede Globo de televisão noticiaram o desejo do prefeito de Embu de expulsar do país o padre irlandês usando a ‘lei do estrangeiro’. Depois da repercussão da notícia, houve uma missa no centro do Embu das Artes contando com a presença de todos os padres da região que repudiaram a notícia e apoiavam o padre Jaime. Durante o protesto foi possível ouvir todos em uníssono gritarem em alto e bom som: “Nesta terra ninguém é estrangeiro”. O prefeito recuou.
Jardim Ângela
Depois de muitos anos na cidade de Embu, a partir de 1986 Jaime partiu para a região onde permaneceu a maior parte de sua vida: o Jardim Ângela, extremo sul da capital paulista, marcada na época pela violência e pobreza. Por provisão do bispo auxiliar da Região Itapecerica, Dom Fernando Penteado, assumiu a paróquia Santos Mártires, que oficialmente foi criada em dezembro de 1988.
Na paróquia Santos Mártires, padre Jaime foi um grande nome e referência de transformação ao denunciar as violações de direitos humanos e a violência que ceifou a vida de inúmeros jovens da região. Na década de 1990, o Jardim Ângela foi considerado pela ONU (Organização das Nações Unidas) como o bairro mais perigoso do mundo.
Em 1996 ajudou a criar o Fórum em Defesa da Vida, uma iniciativa da sociedade civil organizada. Com reuniões mensais, a iniciativa reúne diversos representantes da comunidade local e membros de instituições públicas e privadas para o debate e levantamento das necessidades da região.
Em 2018, em entrevista a este jornal sobre seu trabalho na zona sul da capital, padre Jaime declarou: “Quando cheguei aqui, tinha apenas poucos postos de saúde nas redondezas, a violência já era muito grande, o acesso era difícil, faltavam escolas, creches, era preciso fazer algo para defender os direitos humanos”.
As contribuições e lutas de padre Jaime foram tão variadas que, quando enumeradas, corre-se o risco de deixar de fora algumas delas. Antes de retornar à Irlanda em maio de 2021, por motivos de idade, em sua carta de despedida padre Jaime e Eduardo agradecem a Deus pelas muitas obras realizadas e pelas pessoas que contribuíram nas lutas: as caminhadas pela paz, entre a paróquia e o Cemitério São Luiz, a insistência para a construção do Hospital M’Boi Mirim, do Metrô Jardim Ângela, a duplicação da Estrada do M’Boi Mirim. Nos últimos anos, também incentivou a Romaria das Águas e o Abraço Guarapiranga.
Sociedade Santos Mártires
Tanta pobreza e esquecimento por parte do poder público naquele pedaço de chão fez nascer a Organização Não Governamental (ONG) Sociedade Santos Mártires, que tem como missão ser uma chama de esperança na região do Jardim Ângela através de ações que valorizam e estimulam a prática da cidadania.
Ele mesmo nos falou sobre o início da sociedade: “As mães que muitas vezes precisavam trabalhar para ajudar no lar ou eram mães solteiras, não encontravam vagas nas poucas creches que havia por aqui, então começamos de forma voluntária a cuidar destas crianças, aqui mesmo no espaço da igreja. Aos poucos e ao longo destes anos, com muita luta conseguimos implantar os Centros de Educação Infantil (CEI), os Centros para Crianças e Adolescentes (CCA) e os Centros para a Juventude (CJ)”.
Nossas reuniões semanais, todas as terças, para planejar a partir do Evangelho, juntamente com lideranças leigas da paróquia todas as nossas ações. Essa reunião era sagrada e em sua sabedoria nos fortalecia.
Projetos de proteção especial e inclusão como a Casa Sofia (para mulheres vítimas de violência doméstica), o Serviço de Proteção Social a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência (SPVV), o Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA) e o Ninho da Esperança engrossam até hoje a ação social da Sociedade. Cerca de 10.000 pessoas recebem assistência através dos muitos trabalhos da ONG.
Homenagens
Padre Jaime e suas lutas foram reconhecidas em vida pela sociedade civil. Muitas foram as homenagens e títulos de cidadão, incluindo o de cidadão Embuense. Em 2005 recebeu o Prêmio USP de Direitos Humanos e o último deles, o Prêmio Dom Paulo Evaristo Arns de Direitos Humanos, em 2016.
Repercussão da morte
Muitos políticos, entre eles o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, lamentaram a morte de padre Jaime em suas redes sociais. O padre religioso se tornou amplamente conhecido por travar uma intensa luta contra a violência, em especial, nas regiões mais pobres de São Paulo. Fernando Haddad, Silvio Almeida, Eduardo Suplicy, José Guimarães, Ivan Valente e Antônio Donato, também lamentaram sua morte com mensagens nas redes sociais. Seu clube de coração, o Sport Club Corinthians, também lamentou o falecimento de seu ilustre torcedor. Igualmente empenhado pelos mais pobres, padre Julio Lancellotti também prestou homenagens.
O vereador (PSOL) Celso Giannazi apresentou à câmara municipal de São Paulo, no dia 23 de fevereiro, o projeto de lei 63/2023 que pede o acréscimo do nome do padre Jaime Crowe à denominação da Estrada M’Boi Mirim, nos distritos de São Luís e Jardim Ângela. O projeto tramitará pelas comissões da casa para ser votado.
Amigos
Ao longo de sua tragetória padre Jaime fez muitos amigos e um deles se tornou fiel escudeiro: padre Eduardo Joseph Macgettrick, também irlandês e pertencente à Sociedade São Patrício. Chegou ao Brasil em 1974 e foi recepcionado no novo mundo e nos trabalhos pastorais pelo padre Jaime. Entre lutas e desafios, trabalharam mais de 40 anos juntos.
Emocionado, padre Eduardo falou por telefone à reportagem e destacou características que somente aqueles que conviveram de perto com o padre Jaime sabiam: "Têm sido dias difíceis, mas quero destacar três aspectos do padre Jaime: Primeiro, a capacidade de sentir a dor do outro, de se colocar no lugar daquele que sofre, qualquer que fosse a dor. Segundo, a sua capacidade de escutar, de ouvir o problema e buscar solução, não pontualmente, mas amplamente para ajudar sempre mais e mais pessoas. E, terceiro, nossas reuniões semanais, todas as terças, para planejar a partir do Evangelho, juntamente com lideranças leigas da paróquia todas as nossas ações. Essa reunião era sagrada e em sua sabedoria nos fortalecia”.
Regina Paixão, presidente da Sociedade Santos Mártires, também destaca a humanidade do padre Jaime: “Comecei a conviver com o padre em 1993 quando me tornei catequista. Foram 30 anos de aprendizado com o líder que era um verdadeiro discípulo de Jesus. Ele nunca se conformou com a miséria do povo e provocava as autoridades por melhorias, a pessoa mais humana que já conheci. Nunca pediu nada para ele. Chamava a atenção quando era preciso, mas animava na mesma intensidade. Era presente na comunidade e na vida dos seus paroquianos. Sabia ouvir e respeitar as opiniões, mesmo que fossem contrárias às suas. Era de fato o profeta da esperança, estou entristecida com a sua partida, mas a sua missão de luz ficou. Das tantas frases que ele falava e nos fazia refletir, destaco duas: “É caminhando que se abrem os caminhos” e a que eu procuro pôr em prática diariamente: “Sou porque somos”. Ele estará eternamente em minha memória”.
Veja aqui a carta de despedida do padre Jaime e do padre Eduardo ao retornarem para a Irlando em 2021.